Estilo de Vida
Mitos sobre Gênero em uma Matéria da Revista Veja
Jaqueline Gomes de JesusDoutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB e pesquisadora do Laboratório de Trabalho, Diversidade e Identidade - LTDI/UnB.
O tema "gênero" tem-se popularizado, tendência que fica evidenciada pelo aumento no número de matérias, comumente diárias, que vemos na televisão, lemos nos jornais, revistas e na internet. É uma quantidade extraordinária de informações novas que, em alguns casos, está repleta de falácias sobre aquilo que se pretende explicar.
Esse tipo de informação equivocada pode não apenas limitar nosso entendimento sobre nós mesmos, mas têm o terrível poder de levar pessoas a tomarem decisões infrutíferas ou mesmo desastrosas para suas vidas e para as dos outros, especialmente aqueles sob sua responsabilidade.
Na sua última edição, de 19 de dezembro de 2012, a Revista Veja publicou uma matéria, na página 92, assinada por Fernanda Allegretti, e intitulada "EDUCADOS NO SEXO NEUTRO". O estranhamento começou com o título: o que seria "sexo neutro"? O subtítulo completa: "Uma corrente pedagógica defende a tese de que meninos e meninas devem ser criados de forma igual. O perigo é confundi-los acerca de sua sexualidade" (Veja abaixo as páginas da matéria):
"Educados no sexo neutro" - 1ª página (Allegretti, 2012).
"Educados no sexo neutro" - 2ª página (Allegretti, 2012).
"Educados no sexo neutro" - 3ª página (Allegretti, 2012).
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Qualquer universitário que esteja aprofundando estudos em gênero, nos dias de hoje, sabe que a associação direta entre papeis de gênero e sexualidade não se fundamenta em evidências científicas. É uma crença, ou melhor, um equívoco repetido no dia-a-dia, e que repetida na afirmação acima, junto à ideia de confusão, deixa implícito que não seria bom que meninos e meninas fossem criados de forma igual.
Cada vez mais os feminismos, como discursos ideológicos, científicos e/ou políticos, reconhecem que "sexo" não é o mesmo que "gênero", um entendimento que começou com o Feminismo Negro e hoje se expressa no Feminismo que chamamos de Transgênero, ou Transfeminismo (Jesus & Alves, 2010).
Como psicóloga que estuda gênero, e professora, entendo que é necessário evidenciar os conceitos falsos divulgados na matéria, primeiramente porque ela divulga uma compreensão preconceituosa sobre as questões de gênero, fazendo uso, no seu conteúdo, de depoimentos de psicólogas; e, em segundo lugar, porque ela nega pesquisas sérias que tem sido feitas a respeito.
Em um seminário internacional sobre violência, realizado recentemente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, perguntaram minha opinião sobre a tendência de algumas poucas escolas e famílias, principalmente fora do Brasil, de educar as crianças sem adotar estereótipos de gênero (esse é o tema da matéria de Veja), é notável que isso tem mexido com a cabeça de muitos pais por aqui.
Seria temerário falar sobre a didática e a pedagogia da proposta, considerando que sou psicóloga social, então abordei a questão a partir do meu referencial, os estudos de gênero: a identidade de gênero das pessoas (identificar-se como homem ou mulher) é uma construção social e cultural; quanto menos estereótipos sobre semelhanças e diferenças sobre homens e mulheres forem adotados como verdades em qualquer processo educativo, formal ou informal, maior será a chance de que tenhamos pessoas menos submissas ao mito de que essas diferenças foram construídas "naturalmente", em função do sexo biológico das pessoas, o que tem sido utilizado, em termos práticos, para justificar todo tipo de opressão de gênero, tanto para mulheres quanto para homens, historicamente com maior prejuízo social para as mulheres. É uma hipótese fundamentada em dados.
A matéria, como ainda é frequente no senso comum, confunde sexo biológico com gênero e, ainda, com sexualidade. São dimensões diferentes:
O fato de uma pessoa ter nascido com uma determinada conformação genética/genital (ser macho ou fêmea cromossomicamente) não incorre em que ela, necessariamente, aja como se espera de uma
suposta correspondência macho/homem ou fêmea/mulher. A construção das diferenças entre homens e mulheres é social, e não biológica (Butler, 2003).
O cartunista Laerte, que recentemente se assumiu crossdresser (leia a
Nota no fim do artigo), produziu uma charge que ilustra bem essa questão, a intolerância à livre expressão de gênero que pauta nossa educação tradicional, veja abaixo:
Já a dimensão da sexualidade, que podemos chamar de orientação sexual (assexual, bissexual, heterossexual ou homossexual), refere-se à atração afetivossexual por alguém de algum/ns gênero/s: uma dimensão não depende da outra, não há uma “norma” de orientação sexual em função do gênero das pessoas, nem todo homem e mulher é “naturalmente” heterossexual.
A ideia do que sejam homens e mulheres, na matéria, é tão fixa, que, a exemplo do que já apontou Haraway (1994), serve apenas para reproduzir a matriz de dominação de homens sobre homens e de mulheres sobre mulheres, pois afirma que há "comportamentos que
sempre foram vistos como típicos de seu 'sexo'" (mais uma confusão conceitual entre sexo biológico e gênero), um dos "comportamentos citados é o de meninos vestirem azul e meninas vestirem rosa, um hábito que começou a ser propagada recentemente, em termos históricos, tão-somente após os anos 50 do século XX. Antes dele, o normal era as crianças se vestirem de branco, porque dava menos trabalho aos pais, que tinham muitos filhos e precisavam reaproveitar roupas entre eles (Kidwell & Steele, 1989).
Nesse sentido, a ideia de "inversão de papeis", defendida na matéria como inadequada, abriga preconceitos contra a livre expressão de gênero, que na linguagem adotada pela jornalista, às vezes soa como uma forma de medo, demonstrada quando ela exemplifica sua tese ao depreciar o que chama de "jeito masculinizado" da filha da atriz Angelina Jolie, sem no entanto apresentar qualquer argumento que demonstre consequências negativas para o aprendizado ou para a vida psicossocial dessa criança.
O texto ainda tenta, indevidamente, generalizar um caso específico de suicídio como exemplo de que ir "contra a natureza" leva a graves consequências. Nesse imbróglio, é usado ultrapassado termo "mudança de sexo", seguido de mais uma confusão entre sexo biológico e gênero, sobrepostos a sexualidade, que aliás é apenas citada, entretanto, em nenhum momento se cita algum evento de fato relacionado à orientação sexual: ao longo do texto, todas as referências a comportamentos são, evidentemente, expressões de gênero, e não de sexo ou de orientação sexual.
De fato, pais esclarecidos e profissionais qualificados não buscam hoje mudar a orientação sexual das pessoas, porém, o caso citado é mais um exemplo de que não é a conformação genital que determina a identidade de gênero das pessoas, e a complexidade da história apropriada não pode ser compreendida sem que se conheça profundamente a realidade da pessoa retratada.
Além disso,
o que o suicídio citado tem a ver com uma educação que tenta não aprofundar estereótipos de gênero? Uma análise do discurso do texto indica que a colocação dessa história no meio da matéria tem a função de atemorizar leitores (principalmente pais e educadores) sem informações atualizadas sobre gênero e sexualidades, sob um subtexto de que crianças que não são ferrenhamente aprisionadas a um modelo de gênero socialmente tido como "adequado" para o seu sexo biológico (uma correlação que já mencionei aqui como crença), podem sofrer sérios riscos futuros. Quem realmente estuda gênero e sexualidades (e não é apenas um/a auto-proclamado/a especialista em algo) discorda frontalmente.
Por fim, dado que à matéria da Veja subjazem preconceitos contra a homossexualidade, que é inclusive citada. Vale lembrar que, no Brasil, as orientações sexuais homossexuais e bissexuais ainda são vistas como tabus, o preconceito e a discriminação sofridos por esse grupo acontecem mesmo no âmbito familiar. Nas escolas, em particular, a realidade é temerária. Segundo a UNESCO, por exemplo, cerca de 25% dos alunos do Distrito Federal não gostariam de ter um amigo homossexual (Waiselfisz, 2004). Nessa conjuntura, a matéria da Veja pode servir, tão-somente, como perpetuadora de mitos, e usada como justificativa para práticas de exclusão.
Diversidade sexual e de gênero é assunto para qualquer ser humano. Quanto menos preconceitos e conceitos errôneos repetirmos, melhor poderá ser a vida de todos em uma sociedade democrática que efetivamente respeite as pessoas em sua diversidade.
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Nota: para as pessoas interessadas em se aprofundar nessa discussão, e entender melhor os conceitos aqui abordados, está disponível, no site do Ser-Tão - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade vinculado à Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, a 2ª edição do
e-book Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos, que elaborei com a finalidade de esclarecer algumas dessas questões, com uma linguagem acessível, principalmente para formadores de opinião, como jornalistas:
http://www.sertao.ufg.br/pages/42117Bibliografia citada:
Allegretti, F. (2012). Educados no sexo neutro.
Revista Veja, 19 de dezembro, pp. 92-96.
Butler, J. (2003).
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Haraway, D. (1994). Um manifesto para os cyborgs: ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In H. B. Hollanda (Org.),
Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de janeiro: Rocco.
Jesus, J. G. & Alves, H. (2010). Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais.
Cronos, 11(2), 8-19. Disponível em http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2150/pdf
Kidwell, C. B. & Steele, V. (1989).
Men and women: dressing the part. Washington: Smithsonian Institution Press.
Waiselfisz, J. J. (2004).
Mapa da violência IV: os jovens do Brasil, juventude, violência e cidadania. Brasília: Unesco, Instituto Ayrton Senna, Ministério da Justiça/SEDH.
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