Estilo de Vida
Sou Mensageira Entre Mundos
Após qualquer impressão inicial ante ao título, é importante esclarecer que este não é um texto espírita.
Frente aos constantes pedidos para falar sobre mim — assunto que considero extremamente enfadonho — e relatar algumas de minhas memórias, resolvi me posicionar a respeito, e irei frustrar a segunda parte dos anseios de meus leitores (creio que somente quem passou dos 60 anos de idade tem uma história de vida significativa para ser contada — se não morrer antes).
Falando nisso, se um dia alguém ousar escrever sobre mim, e uma lei da censura prévia para biografias estiver em vigor, desde já autorizo, mas somente na condição de que ele ou ela comece o texto relatando a cena do meu falecimento:
Na clareira de um manguezal, à foz de um rio, estão sentadas a velha e a criança, duas em uma como sempre fui até a morte. A senhora de idade moldando o barro para fazer vasilhas e a ingênua criancinha se divertindo ao apertar a lama, sentindo prazer em vê-la escorrer barulhenta entre os dedos.
A idosa observa feliz a pessoinha entretida, indiferente ao mundo que a cerca e agora enfiando o braço no buraco de um caranguejo, enquanto se pergunta, sob os raios de Sol que passam entre as folhas, qual será sua próxima aventura.
A senhora devaneia satisfeita com a lembrança das paixões e do amor de sua vida, a criança fica com água na boca só de pensar em comer pães de queijo, beijus, frango assado com a pele, iogurtes e ambrosia!
É neste momento que o Tempo chega, vindo do Sertão, terra vermelha embaixo das unhas dos pés, e nos chama para um passeio, damos as mãos a ele, que gentilmente nos leva em direção ao Mar.
Voltemos ao presente. Bastante tempo tenho refletido sobre o meu temperamento e a natureza das minhas ações, sei que sou, por vezes, a criatura chata e ácida que vai construindo modos de luta ao longo da vida; e em outros momentos, a sonhadora deslocada do seu entorno que vai plantando flores pelo caminho; aquela que vive as mil condições de se chamar "eu" entre rotinas e impasses de uma sociedade conformada e excludente; a pensadora que observa e questiona os mecanismos de poder, repensa teorias e práticas.
Isso tudo não sintetiza quem eu sou, aquilo que não me confunde com outras gentes, depois do meu trigésimo quinto aniversário. O meu ser não é um ou todos meus rótulos e identidades sociais pontuados ou intersecionados, quem eu sou não o é no sentido de existir, tampouco no de estar, mas num outro, inusual, o de
fazer.
Eu sou o que eu faço. O resto são imagens e abstrações.
Não paro de pensar nos subalternizados, nos considerados abjetos, nos inferiorizados pelo olhar desumanizador sobre os outros.
Esta é a minha obsessão: eu poderia somar as horas de cada conversa, palestra e aula na qual abordei a questão da diversidade humana e certamente contaria dias.
Recostada, sentada, em pé, à janela - observo com amargor e uma ponta de desespero a marcha inexorável dsa ideias e atos que transformam seres humanos em subcidadãos, déspotas, criaturas naturalizadas ou alienados servidores das oligarquias. Ela continua, ela prossegue, ela tem cargos. Eles falam, eles denunciam, eles marcham.
Algo que posso falar sobre mim é que observar e escrever a respeito é tudo e o melhor que eu sei fazer. Eu poderia não estar escrevendo deste lugar, como poderei não mais escrever a partir dele, mas onde quer que eu estivesse ou esteja, continuaria e continuarei descrevendo e analisando o mundo com este mesmo sentimento de Graça, uma igual sensação de puro prazer. Esse é um exercício que exige sangue, suor e, às vezes, lágrimas, semelhante ao exaustivo trabalho de desenhar e montar um mosaico, essa amada arte da incompletude e do fragmento feita por pessoas obcecadas.
No fundo, olhando dentro e fora de mim, somando tudo de diverso no sempre fiz e faço, vejo que, à margem e no meio de tudo, eu sou, no que faço, uma mensageira entre mundos, os quais, dialeticamente, são o mesmo.
Imagens explicam melhor que palavras, mesmo que aquelas sejam expressas por estas: do telhado da outrora nossa casa amarela no Setor “O”, periferia de Brasília, a criança que eu fui observa a Barragem do Descoberto e os planaltos goianos logo ali, depois da fronteira imaginária. Ela imagina o que há além daquele horizonte, pois conhece o mar do nordeste brasileiro desde os três meses de idade porém nunca foi a Goiânia.
Desce cuidadosamente, utilizando o velho limoeiro como apoio, e consulta a pequena biblioteca que seu pai e sua mãe montaram, com enciclopédias e livros de ficção, buscando respostas para as muitas questões que lhe assomam a mente curiosa. À noite irá aprofundar sua pesquisa, escavando entre as publicações da rica biblioteca da escola pública onde sua mãe trabalha, depois de lecionar durante o dia, para melhorar a renda e cuidar dos livros e leitores.
Jovem, comecei logo a usar meus próprios pés para conviver com as vidas e lugares além do horizonte conhecido pela criança. Assim faço e sou até hoje, aqui ou ali.
Perdoe-me quem se angustia ou se irrita por eu ser tão verdadeira: quem você afirma que eu sou, e como eu me chamo algumas vezes, não me descreve no que sou. Minhas identidades, e as suas, não cabem na prisão de um discurso - ou, como outros preferem, de um ato de fala. Esses atos servem em certos momentos.
Somos o que fazemos, neste momento você que me lê me faz uma mensageira entre mundos. Logo,
quem é você?
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Jaqueline Gomes de jesus
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Acredito que, se a alma de Brasília está no Beirute, como dizem, então o seu coração está no Parque da Cidade.
Quem é da Capital me entende, e mais: se tem a minha idade,...
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