Carta a Ancelmo Góis - O Globo sobre "O Leão é Gata"
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Carta a Ancelmo Góis - O Globo sobre "O Leão é Gata"


Prezado Ancelmo Góis,
Como admiradora de seu trabalho de valorização da história e da cultura brasileira, incluindo o respeito aos direitos das pessoas, não podia deixar de registrar meu espanto ao ler sua coluna no jornal O Globo de hoje, 23/11, particularmente com relação à nota "O leão é gata" (http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/posts/2012/11/23/a-coluna-de-hoje-476121.asp), na qual, desde o título, um homem é ridicularizado por supostamente se relacionar com uma travesti, na nota nomeada como "um...".
A população transgênero (composta por travestis e pessoas transexuais) é historicamente estigmatizada, marginalizada e perseguida, devido à crença na sua anormalidade, decorrente do estereótipo de que o “natural” é que o gênero atribuído ao nascimento seja aquele com o qual as pessoas se identificam e, portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o que se julga ser o “adequado” para esse ou aquele gênero.
Em seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito, desatendimento de direitos fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar os nomes com os quais se identificam e elas não conseguem adequar seus registros civis na Justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou impedido a educação, ao mercado de trabalho qualificado e até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a agressões e homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos discriminatórios contra homens e mulheres transexuais e travestis denominada “transfobia”.
Ontem participei na UERJ de um seminário internacional sobre violência, no qual fiz uma apresentação sobre os assassinatos de pessoas travestis e transexuais no mundo, com dados que chocaram a todos os acadêmicos presentes.
O Brasil é o país no qual mais se matam pessoas trans no mundo. Dos 816 assassinatos registrados de homens e mulheres transgênero em 55 países, entre 2008 e 2011, o Brasil responde por 39,8%, e somente na América Latina, por 50, 5%, seguido do México, com 60 assassinatos, e da Colômbia, com 59.
Somente em 2011, 248 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis, a maior parte no Brasil, com 101 vítimas, seguido do México, com 33, e da Colômbia, com 18.
As violações contra pessoas trans adotam o padrão dos crimes de ódio, motivados por preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a identifique como parte de um grupo discriminado, socialmente desprotegido, e caracterizados pela forma hedionda como são executados, com várias facadas, alvejamento sem aviso, apedrejamento, reiterando a abjeção com que são tratadas as pessoas transexuais e as travestis no Brasil. O grupo composto pelas pessoas trans é alvo significativo de crimes de ódio. Quem irá chorar por elas?
Nesse contexto de tamanha violência, e impunidade, os meios de comunicação brasileiros são contumazes em reproduzir estereótipos de gênero que desumanizam pessoas transexuais e travestis, e que podem redundar na reafirmação da violência estrutural contra essas pessoas.
Reitero que as notícias veiculadas pelos meios de comunicação não são responsáveis pela naturalização da violência, mas oferecem pistas para essa naturalização, e a sua perpetuação.
Dentre os estereótipos acerca da população transgênero brasileira que são reproduzidos pelos meios de comunicação, estão:
1) Tratá-las como objetos, reduzindo-as à condição de mercadoria;
2) Apresentar uma visão restrita das travestis (e eventualmente das mulheres transexuais), como se fossem apenas profissionais do sexo;
3) Empregar tratamento masculino para pessoas que se identificam de forma feminina; e
4) Ridicularizar quem se relaciona afetivamente com pessoas transgênero.
Tal processo, que redunda em preconceitos e discriminação na vida cotidiana das pessoas trans, tem a finalidade de divertir o telespectador ou o leitor, uma prática recorrente em nossos meios de comunicação, que apelam frequentemente a esse tipo de humor que deprecia o ser humano.
Enfim, fiz esta longa explanação, prezado Ancelmo Góis, para que você e seus colaboradores entendam a gravidade da mensagem subjacente à nota "O leão é gata", na qual, desde o título, mais uma vez, um homem (não importa aqui discutir que papel social ele assume) é ridicularizado pelo simples fato de se relacionar afetivamente com uma travesti, ao se sugerir que ele não seria "leão" e sim "gata", e que foi "flagrado de namorico" com uma travesti, subtendendo-se que ele estaria fazendo algo errado; e também porque, também novamente, trata-se uma pessoa travesti como um objeto, e se usa um termo masculino para se referir a alguém que vive e se relaciona socialmente como mulher.
Como cidadã, lamento que essas práticas transfóbicas sejam repetidas, especialmente em um espaço que valorizo. Como pesquisadora, quero demonstrar que pequenas notas como essas servem para esconder a gravidade do cenário de horror a que as pessoas trans são submetidas neste país, invisibilizadas até mesmo quando assassinadas, e que ao invés de repudiar a transfobia, notas como essa mais uma vez causam risos sobre pessoas que são diariamente violentadas apenas por serem quem são.
Atenciosamente,
Jaqueline Gomes de Jesus
Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB e pesquisadora do Laboratório de Trabalho, Diversidade e Identidade - LTDI/UnB
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