O CASO MIRIAN FRANÇA
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O CASO MIRIAN FRANÇA


Gaia Molinari. Fonte da imagem aqui.


O CASO MIRIAN FRANÇA
Jaqueline Gomes de Jesus*

Seria conveniente que você não conhecesse Mirian França de Mello antes de saber o que aconteceu com ela (as circunstâncias em que ela se encontra e as quais me dignaram a escrever este texto), para que não forme um juízo preconceituoso, perca o interesse em minha crítica ou a considere exagerada, senão imprópria.

Há três semanas ela começou a ser citada, sem referências ao seu nome, apenas à sua origem geográfica (carioca), em diferentes meios de comunicação.

No Natal de 2014, o corpo de Gaia Molinari, 29 anos, turista italiana, formada em Ciências da Computação, foi encontrado na localidade de Serrote, em Jijoca de Jericoacoara, no Ceará. Apresentava lesões na cabeça, arranhões pelo corpo e sinais de estrangulamento. Morreu por asfixia, na véspera.

Mirian França, 31 anos, farmacêutica cursando doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, conheceu Gaia porque buscou, pela internet, companhia para a viagem de fim de ano, de modo que se conheceram no dia 17 de dezembro e estavam hospedadas no mesmo albergue em Fortaleza.

Você pode imaginar, sem maiores detalhamentos, que Mirian França seja uma morena pálida e magra, oriunda de família de classe média, trabalhando com jaleco em um laboratório. Bem, essa figura não descreve fielmente a pessoa.

Gaia e Mirian foram juntas a Jericoacara no dia 21, Mirian voltou à capital cearense antes. Na condição de testemunha, prestou depoimento na Delegacia de Proteção ao Turista (Deprotur). Após acareações, foi presa temporariamente por, segundo a delegada responsável, sem descrever as condições, contradizer-se no testemunho.

Com exceção do vil assassinato de Gaia, a notícia não mobilizou os leitores com relação à inquirida. Prevaleceu a confiança cega nos procedimentos investigativos. Um turista uruguaio e sua noiva, que trocaram mensagens com Gaia, também foram presos, mas logo liberados.

Entretanto, diferentes pessoas, incluindo a mãe de Mirian, começam a questionar a legalidade da prisão. Por que ela foi presa sem flagrante? Desde quando contradizer-se ou se confundir num testemunho justifica prisão? Por que ela não pôde se comunicar com os familiares? Como ela, mediando 1,60 metros, poderia ter asfixiado Gaia? Como o encarceramento temporário é adequado se Mirian tem residência fixa? A partir desse momento, surge a denúncia de que Mirian França foi presa injustamente, e assim se encontra até o momento da escrita deste artigo.

Estou certa que parcela considerável de quem leu esta caracterização dos personagens e suas situações, deve-se indagar: porque uma moça com esse perfil cometeria um crime tão hediondo? Temos lá nossos preconceitos de classe, os quais, simploriamente, associam violência a pobreza ou baixa escolaridade.

Você teria outra opinião se eu tivesse iniciado afirmando que Mirian França é negra?


Mirian França. Fonte: facebook.

Pois ela é. Movimentos e cidadãos indignados em todo o Brasil têm-se articulado para que ela seja libertada, reconhecendo que a arbitrariedade de sua prisão tem um elemento gerador e agravante, negado sistematicamente pelas forças de segurança e alguns jornais locais: o racismo.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o jovem Rafael Braga Vieira, morador de rua, encontra-se preso desde 20 de junho, por participação nos protestos de 2013, acusado de porte de material explosivo. Ele carregava uma garrafa contendo água sanitária e outra com álcool. Além dos acusados pela morte do morte do cinegrafista Santiago Andrade, ele é o único detido por estar presente nas manifestações. Sim, estou citando-o aqui, peremptoriamente, porque ele também é negro.

Esses dois casos revelam como falhas procedimentais podem fazer interseção com dimensões identitárias, evocando o espírito do preconceito, em pauta, o racismo institucional, envolto no discurso oficial de que a discriminação racial não existe mais, e que, portanto, acusações que apontam a sua ocorrência seriam equivocadas.

Ainda pode haver outro aspecto pesando na investigação, que não foi apercebido da maioria: a lesbofobia. Conhecemos exemplos de que não é necessário ser homossexual para, numa sociedade homofóbica, ser alvo de todo tipo de violações. Basta ser reconhecido(a) como tal, mesmo que não se vivencie essa orientação sexual.

Segundo fala à imprensa do uruguaio já liberado, a polícia suspeita que Mirian e Gaia tivessem um relacionamento afetivo. Leiam este depoimento da delegada responsável, Patrícia Bezerra, que encontrei no jornal Tribuna do Ceará: “Foi feito exame para comprovar ou não a existência de sêmen coletado no corpo da vítima. Esse exame deu negativo, então, em princípio, não houve violência sexual por parte de um homem”. A tese, vis a vis, é a de um crime passional.

Implicitamente, reforça-se a ideia da participação de uma mulher no homicídio, a partir da suposição de que um homem não estuprou Gaia, mas pode ter auxiliado na realização do ilícito.

Enfim, como podemos considerar que está ocorrendo uma investigação justa nas condições em que Mirian foi presa? Quem tem um mínimo de conhecimento – e sensibilidade – acerca da lógica dos aprisionamentos no Brasil, que afetam preponderantemente a população negra, obviamente desconfia do processo em curso.

É bastante apontado, pelos movimentos negros, o uso excessivo dos poderes de polícia no que tange à revista de homens negros (popularmente conhecida como “baculejo” ou “dar uma dura”), principalmente os jovens, mas, igualmente, as políticas de detenção e de custódia são envoltas em constantes dúvidas quanto a sua eficácia e adequação, quando aplicadas à população negra.

No entanto, a questão vai além: onde estão os argumentos para a prisão dessa jovem que não são divulgados, apenas sugeridos? Corre pelas redes virtuais esta mensagem, a qual endosso: Libertem Mirian França! E que seja feita justiça a Gaia Molinari.


*Jaqueline Gomes de Jesus é psicóloga, com doutorado em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília e pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.




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