Estilo de Vida
Uma Cultura Transgênero
Quero aqui partilhar algumas reflexões sobre o que seria uma cultura transgênero, livre de subordinação às demais, autônoma, criativa e representativa do que as pessoas transexuais e travestis pensam e vivem.
Uma cultura transgênero pressupõe que homens e mulheres transgênero, e as pessoas que convivem com eles, partilhem de um conjunto de representações e práticas sociais, ambas fundamentadas em uma ideologia que, a partir do entendimento de que o gênero vai além do sexo, ou melhor, dos órgãos genitais, podem existir homens sem pênis, mulheres sem vagina.
O que importa, na definição do ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto-percepção e a forma como a pessoa quer se expressar socialmente.
O que é ser uma pessoa transgênero? Vamos por partes.
Para mim, a resposta mais simples e completa que define as pessoas transexuais é da profa. Berenice Bento: mulher transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento como mulher; homem transexual é toda pessoa que reivindica o reconhecimento como homem. Ao contrário do que alguns pensam, o que determina é a identidade, e não um procedimento cirúrgico. Assim, muitas pessas que hoje se consideram travestis seriam na verdade transexuais.
Entendo que somente são travestis as pessoas que vivenciam diferentes papéis de gênero mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, entendendo-se como membros de um terceiro gênero ou de um não-gênero. Creio que também são pessoas transgênero.
Uma dúvida surge com relação aos crossdressers, que não buscam um reconhecimento de gênero (não são transexuais) e, apesar de vivenciarem diferentes papéis de gênero, sentem-se como pertencentes ao gênero que lhes foi atribuido ao nascimento (não são travestis). Seriam transgêneros?
Para pensar esse aspecto, recordo que drag queens/kings e transformistas vivenciam a transposição do gênero como espetáculo, não como identidade. Aproximam-se dos crossdressers pela funcionalidade do que fazem, e não das travestis e transexuais pela identidade.
Reflito, porém, que os dois aspectos cabem na dimensão transgênero, enquanto aspectos diferentes da condição: a vivência do gênero como identidade (transexuais e travestis) e a vivência do gênero como funcionalidade (crossdressers, drags e transformistas). Não há incoerência nisso, apenas se reconhece que, dentro da cultura transgênero, há diversidade de formas de viver o gênero.
Para mim, esses são os atores de uma cultura transgênero.
Este é um primeiro ponto. A partir dele é necessário, para a consolidação da cultura transgênero, uma aceitação social sobre essas pessoas, que deveria ocorrer em 3 níveis:
1) As pessoas transgênero se reconhecem como tais. Travestis, transexuais e outras pessoas que vivenciam a dimensão trans compartilham da ideologia de que eu falava acima. Isso ainda é frágil hoje, pois muitas pessoas trans estão ainda conformadas com as velhas e superadas concepções dimórficas (mulher=vagina; homem=pênis);
2) Os parceiros e amigos das pessoas trans também devem partilhar da ideologia que permite viver como homem ou mulher de acordo com a própria percepção e como se relaciona com outros, e não em função de uma parte do corpo ou da genética;
3) Visibilidade social. Não falo da exposição das vidas privadas, mas da existência de momentos e espaços especiais onde, eventualmente, as demandas das pessoas trans, seus parceiros e amigos se tornem visíveis para eles mesmos e para a sociedade em geral: campanhas, textos, vídeos, internet, debates, exposições... onde as mulhres e homens transgêneros falem de si, por si mesmos.
Com isso temos uma ideologia formada, certamente múltipla e com características regionais, sobre o que é ser transgênero.
Tentemos agora pensar quais seriam as representações e práticas sociais decorrentes dessa ideologia, com elas teremos uma cultura transgênero viva.
Precisamos valorizar as pessoas transgênero, como iguais às demais, porém únicas e com um rico universo de ideais e formas de ser.
Pode parecer tolo, mas, de alguma forma, precisamos do sentimento de "divindade" em nós. Não necessariamente acreditar em um(a) deus(a) ou deuses, mas sentir que temos uma História que remonta às antigas divindades, como o ovo primordial, de onde surge a vida sem limitações, que não tem sexo e tem todos, de onde surgem os seres hermafroditas, antigamente considerados deuses.
Faria muito bem às mulheres e homens trans, antes criminalizados e hoje inferiorizados e patologizados, saber que, em outras épocas, seriam tratados como deusas e deuses. Hoje são alvo de curiosidade, porém marginalizados; são objetos de desejo, porém excluidos.
Por fim, as pessoas transgêneros precisam de espaços que possam chamar de "nossos". Na falta de lojas, grupos, bares ou clubes de convivência para transgêneros e parceiros, como há nos Estados Unidos, por exemplo, os espaços virtuais surgem como uma alternativa de diálogo, troca de informações e, até mesmo, de formação de relacionamentos afetivos, sejam quais forem.
Isso mostraria para as pessoas transgênero que podem se amar e ser amadas, e não apenas usadas para entretenimento de outros. E mostrar à sociedade que têm sonhos, amigos, parentes, companheiros. Não são ilhas isoladas do mundo.
Enfim, Basta! Ser parte de uma cultura transgênero é ver o que nos ensinam ser nossos defeitos como o que nos humaniza, o que nos dizem ser uma doença como nossa forma de ser no mundo, e o que nos diminui aos seus olhos uma parte do que nos diviniza! Retomemos, por meio dessa cultura, o valor das pessoas transgênero.
Lembremos que transexuais e travestis são portadoras e portadores de experiências e sensações, de uma forma de ser por fora o que se é por dentro, que outras pessoas jamais poderão vivenciar, apenas reconhecer por meio das pessoas transgênero.
Irmãs e irmãos trans, retomem o seu orgulho, lutem pela sua dignidade, mesmo se for preciso desobedecer! E quando você for desprezada(o), rotulada(o), erga sua cabeça e pense: "Sou uma Deusa", "Sou um Deus", e diga a essa pessoa um pouco do que você, e do que ela jamais será.
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